Em Alexandria no Antigo Egito, havia uma imensa biblioteca e um instituto de pesquisas associado. E neles trabalhavam as melhores mentes do mundo antigo. Dessa lendária biblioteca só o que resta é este porão úmido e esquecido. Ele fica no anexo da biblioteca, o Serapeum, que era um templo mas depois foi reconsagrado para o conhecimento. Estas poucas prateleiras mofadas que provavelmente ficavam num depósito num porão, são seus únicos restos físicos. Mas isto aqui foi outrora, o cérebro e a glória da maior cidade do planeta Terra. Se eu pudesse viajar de volta no tempo, este seria o lugar que eu visitaria: a Biblioteca de Alexandria no seu auge, há dois mil anos.
Aqui, em um sentido importante, começou a aventura intelectual que nos levou ao espaço. Todo o conhecimento do mundo antigo já esteve abrigado por estas paredes de mármore. Na grande parede pode ter havido um mural de Alexandre... A biblioteca era uma cidadela da consciência humana, um farol para a nossa jornada para as estrelas. Foi o primeiro instituto de pesquisa verdadeiro na história do mundo. E o que eles estudavam? Eles estudavam tudo. Estudavam todo o Cosmo. Cosmo é uma palavra grega que quer dizer "ordem do Universo", de certo modo é o oposto de "Caos". Ela implica uma profunda interconectividade de todas as coisas, o modo intrincado e sutil como o universo é reunido. O gênio florescia aqui. Além de Eratóstenes havia o astrônomo Hiparco que mapeou as constelações e estabeleceu o brilho das estrelas. E havia Euclides que sistematizou brilhantemente a Geometria e disse ao seu rei que estava lutando com alguns problemas difíceis na Matemática, que não havia uma estrada "real" para a Geometria. Havia Dionísio da Trácia - o homem que definiu as partes do discurso: substantivos, verbos etc, que fez pela Linguagem de certo modo o que Euclides fez pela Geometria. Havia Herófilo, um fisiologista que identificou o cérebro e não o coração como o centro da inteligência. Havia Arquimedes, o maior gênio mecânico até a época de Leonardo da Vinci, e havia o astrônomo Ptolomeu que compilou muito do que hoje é a pseudociência da Astrologia. Seu universo centrado na Terra dominou por 1.500 anos mostrando que o brilhantismo intelectual não é garantia contra ... estar errado! E entre esses grandes homens também havia uma grande mulher, o nome dela era Hipácia e ela era matemática e astrônoma - a última luz da biblioteca, cujo martírio está ligado à destruição deste lugar sete séculos depois dele ter sido fundado.
Vejam este lugar: os reis gregos do Egito que sucederam Alexandre colocaram os avanços na Ciência, na Literatura e na Medicina entre os tesouros do império. Durante séculos eles apoiaram generosamente a pesquisa e a erudição - um esclarecimento dividido por poucos chefes de estado na época e agora. Neste grande salão havia dez grandes laboratórios de pesquisa. Havia fontes e colunatas, jardins botânicos e até um zoológico com animais da Índia e da África subsaariana. Havia salas de dissecações e um observatório astronômico. Mas o tesouro da biblioteca, consagrado ao deus Serápis, construída na cidade de Alexandre, era a sua coleção de livros. Os organizadores da biblioteca varreram todas as culturas e línguas do mundo atrás de livros. Eles mandaram agentes ao exterior para comprar bibliotecas. Os navios comerciais que atracavam no porto de Alexandria eram vasculhados pela polícia, não para encontrar contrabando mas livros! Eles pegavam emprestados os pergaminhos, os copiavam e devolviam aos donos. Até serem estudados esses pergaminhos eram guardados em grandes pilhas chamadas "livros dos navios". É difícil saber os números exatos mas parece que a biblioteca continha, em seu apogeu, quase um milhão de pergaminhos.
A cana do papiro cresce no Egito. Ele é a origem da nossa palavra "papel". E cada um dos volumes daquele milhão que existia nesta biblioteca foi escrito à mão em pergaminhos de papiro. O que aconteceu com aqueles livros todos? Bem, a civilização clássica que os criou desintegrou-se, a própria biblioteca foi destruída, apenas uma pequena fração dos trabalhos sobreviveu. E do resto sobraram apenas fragmentos espalhados de dar dó.
Mas por que esses pedaços remanescentes são de atormentar tanto? Por exemplo, sabemos que outrora existia aqui um livro do astrônomo Aristarco de Samos, que parece ter afirmado que a Terra era um dos planetas que, como os outros planetas, orbita o Sol e que as estrelas estão enormemente distantes - tudo absolutamente correto mas nós tivemos que esperar quase dois mil anos para que estes fatos fossem redescobertos.
As pilhas de Astronomia na Biblioteca de Alexandria... Hiparco... Ptolomeu... aqui está! Aristarco. Este é o livro! Como eu adoraria poder ler este livro! Saber como Aristarco descobriu tudo... mas ele sumiu. Totalmente e para sempre. Se multiplicarmos nosso sentido de perda desta obra de Aristarco por, digamos, cem mil, começaríamos a apreciar a grandeza da conquista da Civilização Clássica e a tragédia de sua destruição.
Nós ultrapassamos de longe a ciência conhecida do mundo antigo mas há brechas irreparáveis em nosso conhecimento histórico. Imaginem que mistérios do passado poderiam ser resolvidos com um cartão de usuário desta biblioteca! Por exemplo, conhecemos uma História do Mundo em três volumes - agora perdida - escrita por um sacerdote babilônio chamado Berossus. O volume Um lidava com o intervalo da criação do mundo até a Grande Inundação, um período que ele dizia ter 432.000 anos (ou cerca de cem vezes mais longo do que a cronologia do Antigo Testamento). Que maravilhas havia nos livros de Berossus?
Mas por que eu trouxe vocês, dois mil anos atrás, até a Biblioteca de Alexandria? Porque foi quando e onde nós humanos pela primeira vez reunimos séria e sistematicamente o conhecimento do mundo. Esta é a Terra como Eratóstenes a conhecia - um minúsculo mundo esférico flutuando em uma imensidade de espaço e tempo. Estávamos depois de muito tempo começando a achar a nossa verdadeira situação no Cosmo. Os cientistas da Antiguidade deram os primeiros passos nessa direção antes que a sua civilização desmoronasse. Mas depois da Idade das Trevas foi de longe a redescoberta dos trabalhos que esses estudiosos fizeram aqui, que tornou possível o Renascimento e portanto, influenciou enormemente a nossa cultura. Quando no século XV a Europa finalmente estava pronta para acordar de seu longo sono, ela pegou algumas das ferramentas, livros e conceitos que estavam aqui, guardados há mais de mil anos.
Eratóstenes era o diretor da grande Biblioteca de Alexandria, o centro da ciência e do aprendizado no mundo antigo. Aristóteles tinha argumentado que a humanidade estava dividida entre gregos e o resto que ele chamava de "bárbaros". E que os gregos deviam se manter racialmente puros. Ele ensinou que era adequado os gregos escravizarem outros povos. Mas Eratóstenes criticou Aristóteles por seu chauvinismo cego. Ele acreditava que havia o bom e o mau em toda nação. Os conquistadores gregos inventaram um novo deus para os egípcios, mas ele parecia notavelmente grego. Alexandre foi retratado como um faraó, em um aceno para os egípcios. Mas na prática os gregos estavam confiantes em sua superioridade. Os protestos casuais do bibliotecário mal constituíam um desafio sério para os preconceitos predominantes. Seu mundo era tão imperfeito quanto o nosso. Mas os Ptolomeus, os reis gregos do Egito que seguiram-se a Alexandre tinham pelo menos esta virtude: eles apoiavam o avanço do conhecimento. Ideias populares sobre a natureza do Cosmo eram desafiadas e algumas delas descartadas. Novas ideias eram propostas e descobria-se que estavam mais de acordo com os fatos. Havia propostas imaginativas, debates vigorosos, sínteses brilhantes e o tesouro resultante do conhecimento humano era registrado e preservado por séculos nestas prateleiras. A ciência atingiu a maioridade nesta biblioteca. Os Ptolomeus não reuniam conhecimento antigo apenas. Eles apoiavam a pesquisa científica e geravam novo conhecimento, os resultados eram incríveis. Eratóstenes calculou precisamente o tamanho da Terra. Ele a mapeou e argumentou que ela poderia ser circunavegada. Hiparco antecipou que as estrelas nasciam, deslocavam-se lentamente durante o curso de séculos e finalmente pereciam. Foi ele quem primeiro catalogou as posições e magnitudes das estrelas para determinar se havia tais mudanças. Euclides escreveu um livro sobre Geometria no qual os seres humanos aprenderam durante 23 séculos - ainda é uma grande leitura cheia das provas mais elegantes. Galeno escreveu trabalhos básicos sobre cura e Anatomia que dominaram a Medicina até o Renascimento. Estes são apenas alguns exemplos. Havia dúzias de grandes eruditos aqui e centenas de descobertas fundamentais.
Algumas dessas descobertas tem um toque distintamente moderno. Apolônio de Perga estudou a parábola e a elipse, curvas que hoje sabemos que descrevem os caminhos de objetos que caem em um campo gravitacional e de veículos espaciais viajando entre os planetas. Heron de Alexandria inventou os motores a vapor e a engrenagem dos trens. Ele foi o autor do primeiro livro sobre robôs. Imaginem como o nosso mundo seria diferente se essas descobertas tivessem sido explicadas e usadas em benefício de todos. Se a perspectiva humana de Eratóstenes tivesse sido largamente adotada e aplicada. Mas não foi desse modo. Alexandria era a maior cidade que o mundo já tinha visto. Gente de todas as nações vinha aqui para viver, comerciar, aprender. Em qualquer dia estes portos estavam abarrotados de mercadores, eruditos, turistas. Provavelmente foi aqui que a palavra "cosmopolita" percebeu seu verdadeiro significado: um cidadão não apenas de uma nação, mas de todo o Cosmo.
Ser um cidadão do Cosmo! Aqui estavam claramente as sementes do nosso mundo moderno. Mas por que elas não criaram raízes e vicejaram? Por que em vez disso o Ocidente dormiu por milhares de anos na escuridão até Colombo, Copérnico e seus contemporâneos redescobrirem o trabalho feito aqui? Eu não posso dar uma resposta simples, mas isto eu sei: não há registro, em toda a história da biblioteca, de que qualquer um dos ilustres eruditos e cientistas que trabalharam aqui, tenha desafiado seriamente uma única suposição política, econômica ou religiosa da sociedade em que viviam. A permanência das estrelas foi questionada, a justiça da escravidão jamais!
A ciência e o aprendizado eram em geral o refúgio dos poucos privilegiados. A vasta população desta cidade não tinha a mais vaga noção das grandes descobertas que estavam sendo feitas dentro destas paredes. Como poderia ter? As novas descobertas não eram explicadas nem popularizadas. O progresso feito aqui pouco a beneficiava. A ciência não fazia parte de suas vidas. As descobertas na Mecânica digamos ou na tecnologia a vapor eram aplicadas principalmente no aperfeiçoamento de armas, no encorajamento da superstição, na diversão dos reis. Os cientistas jamais pareceram compreender o enorme potencial das máquinas para libertar o povo do trabalho árduo e repetitivo. As grandes conquistas intelectuais da antiguidade tiveram poucas aplicações práticas. A ciência jamais capturou a imaginação da multidão. Não havia contrapeso para a estagnação, para o pessimismo, para a rendição mais abjeta ao misticismo. Então quando depois de muito tempo a multidão veio para botar fogo aqui, não havia ninguém para impedi-la.
Eu vou contar sobre o final. É uma história sobre a última cientista a trabalhar neste lugar ... matemática, astrônoma, médica e diretora da escola de filosofia neoplatônica em Alexandria. É uma gama extraordinária de conquistas para alguém em qualquer época. Seu nome era Hipácia. Ela nasceu nesta cidade em 370 DC. Era uma época em que as mulheres essencialmente não tinham opções, elas eram consideradas propriedades. Porém Hipácia foi capaz de mover-se livre e desinibidamente por domínios tradicionalmente masculinos. Por todos os relatos ela possuía grande beleza e embora tivesse muitos pretendentes, não tinha interesse no casamento. A Alexandria da época de Hipácia, há muito tempo sob domínio romano, era uma cidade em grave conflito. A escravidão, o câncer do mundo antigo, tinha extraído da civilização clássica a sua vitalidade. O crescimento da Igreja cristã estava consolidando o seu poder e tentando erradicar a influência e a cultura pagãs. Hipácia ficou no foco, no epicentro de forças sociais poderosas. Cirilo, o bispo de Alexandria, a desprezava. Em parte por causa de sua amizade íntima com o governador romano mas também porque ela simbolizava, ela era um símbolo do aprendizado e da ciência que eram largamente identificados pela Igreja nos primórdios com o paganismo. Em grande perigo pessoal, Hipácia continuou a lecionar e publicar até que no ano 415 DC, a caminho do trabalho, ela foi atacada por uma multidão fanática de seguidores de Cirilo. Eles a puxaram da carruagem, rasgaram suas roupas e tiraram a carne dos ossos com conchas de alioti. Seus restos mortais foram queimados, seus trabalhos destruídos, seu nome esquecido. Cirilo foi feito santo.
A glória que vemos à minha volta não é nada além de memória - ela não existe. Os últimos restos da biblioteca foram destruídos um ano após a morte de Hipácia. É como se toda uma civilização tivesse passado por uma cirurgia cerebral radical autoinfligida para que a maioria de suas memórias, descobertas, ideias e paixões fosse irrevogavelmente eliminada. A perda foi incalculável. Em alguns casos sabemos apenas os títulos sedutores de livros que foram destruídos. Na maior parte dos casos não sabemos nem os títulos nem os autores. Sabemos que nesta biblioteca havia 123 peças diferentes de Sófocles, das quais apenas sete sobreviveram até nossa época. Uma dessas sete é "Édipo Rei". Números similares aplicam-se a obras perdidas de Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes. É tão pouco quanto se as únicas obras sobreviventes de um homem chamado William Shakespeare fossem "Coriolano" e "Um Conto de Inverno", embora soubéssemos que ele tinha escrito outras coisas altamente apreciadas em sua época; peças chamadas "Hamlet", "Macbeth", "Sonho de uma Noite de Verão", "Júlio César", "Rei Lear", "Romeu e Julieta".
A História está cheia de pessoas que por medo ou ignorância ou sede de poder, destruíram tesouros de valor imensurável que na verdade pertencem a todos nós. Não devemos deixar isso acontecer de novo.
(Degravação de parte dos episódios 1 (youtu.be/aUOXaykWIMg) e 13 (youtu.be/ljNWnT9tuno) da série Cosmos de Carl Sagan.